Esses
dias, eu acordei lembrando de uma família que eu gostava muito
quando era pequena. Hoje no ônibus encontrei com um deles e soube
que a família não está nada bem, e chega me deu um aperto no
coração. Desde que eu tenho 1 ano e meio, por aí, eu moro perto do
mercado da Encruzilhada. Minha mãe tem um bar por perto e, todo dia,
está lá, é bastante conhecida por todos. Minha mãe comprava fruta
a
uma
família cujos membros eram 4 meninos, o pai e a mãe. Eu tinha quase
a mesma idade que dois deles, e estes, junto com os outros, eram
colocados pra sair vendendo fruta por todo canto. Minha mãe, que
embora seja um poço de grosseria, não é sem coração, dizia ao
pai deles que ia arrumar um serviço lá pros meninos fazerem, ou que
tinha gente querendo fruta pro lado de lá de casa, e deixava os
meninos brincando comigo o dia inteiro, só iam embora quando o
mercado fechava. O mais velho me levava e me buscava na escola,
sempre de bom humor. Os dois com a idade mais
próximas da minha, me
ensinavam todas as pilantragem de moleque: fazer pipa, jogar bola, um
deles desenhava muito bem, um pedia pra eu ensinar ele a melhorar a
leitura porque ele achava bonito eu lendo e escrevendo, e o outro era
um pouquinho mais velho, fazia mais o papel de cuidar da gente. Até
que, um dia, um dos irmãos foi assassinado. Apareceu morto, alguém
matou, do nada. Eu só via o mais velho que ia me pegar na escola,
agora triste, não sabia me explicar o que tinha acontecido com o
irmão. Os dois mais novos pararam de ir lá em casa, o pai deles
havia proibido, a família
tinha que se unir, com menos um agora, ficava mais difícil
trabalhar direito, afinal, um deles tinha lá seus 9 anos, o outro
tinha uns 13 e foi convocado pra tomar o lugar do irmão morto, de
16, e o mais velho com
22. Hoje, no ônibus,
encontrei o mais velho. Ele me disse que os dois estavam presos por
assalto. O mais velho foi criado com mainha desde
dos 15 anos, conseguiu ainda fazer uns cursos técnicos,
tentar cuidar dos irmãos, que deixaram de estudar pra ajudar ao pai,
e que
deixaram de frequentar minha a
casa também. A cada exemplo desses, eu tenho mais aversão ao povo
que chega ao raciocínio
da diminuição da maioridade penal ou que bandido bom é bandido
morto, porque quem tem o mínimo
de contato com gente que vive em situações como
essas, sabe
que eles nao vivem, eles sobrevivem, e é estranho sim quando um dar
certo. O mais velho está trabalhando na fabrica da Vitarella, mas
ralou demais pra chegar ali, comeu muita merda, minha mãe já
o salvou de muita briga com o pai, porque o menino queria ir pra
escola ou tinha tarefa pra fazer, e o pai botava pra trabalhar.
Gostava de quadrilha também, mas não podia ensaiar porque, além de
ser coisa de viado, não ia ter dinheiro pra roupa, nem tempo, nem
dinheiro pra ir ensaiar. Eu não consigo entender essa dificuldade
pra entender que meritocracia não existe, que eu, Lívia VilaBela,
criança da mesma idade do menino, estou numa faculdade e ele tá lá,
preso e
com muito mais talentos do que eu. E ainda me dizem que as teorias
sociais são totalmente a parte da sociedade, que é doutrinação
comunista. Pelo amor de Deus, coloquem a mão na consciência,
prestem o mínimo
de atenção ao seu redor. Está tudo cagado, é a lei do cão,
irmãozinho.